Selas e mazelas

     Um dos grandes entraves à evolução da equitação em nosso meio é o grau de desinformação em que nos encontramos. Passadas de pai para filho, as histórias podem trazer verdades concretas ou perpetuar conceitos falhos, estes últimos mais comuns na herança de nossa cultura equestre.
     Não é difícil entender a razão deste fato. Preterido pelo transporte motorizado, o cavalo deixou de ser peça econômica fundamental, perdendo assim sua importância do ponto de vista de estudo e conhecimento. Numa fase social mais recente, usuários e criadores tornaram-se ávidos por conhecimentos, devolvendo ao cavalo sua devida importância. Ficou neste intervalo um abismo profundo, marcado pelo empirismo, pelo desconhecimento e o que é pior, pela fixação de conceitos falhos e nocivos ao progresso deste segmento.
     Se hoje damos mais importância a conceitos técnicos diretamente ligados ao cavalo, sua conformação e performance, não podemos ignorar as mais diversas informações acerca de tudo o que direta ou indiretamente interfere nesta performance. Podologia e ferrageamento, doma, equitação e adestramento, nutrição, saúde, medicina esportiva veterinária, são alguns destes pontos aos quais devemos dedicar nossa atenção. De forma talvez mais direta, os arreios que usamos ao montar nossos animais. Mas será que existe algo técnico a ser observado e perseguido por nós, algo tão importante sobre selas, envolvidos como estamos com a criação e o uso do cavalo? Com certeza, sim.
     Os índios que povoaram a região central do Brasil, tribo dos Guaicurus, usavam cavalos para suas atividades diárias, tornando-se exímios cavaleiros. Montavam em pêlo, e não por isso deixavam de executar tarefas as mais diversificadas, identificados nos dias de hoje por desenhos característicos em posição de defesa, usando sua montaria como escudo nas batalhas de vida ou morte que travavam com seus rivais. Estes relatos não intimidaram a manufatura e o uso de selas em nosso meio, próteses apropriadas para acomodar o cavaleiro no dorso do cavalo, levando conforto a ambos. É comum ouvirmos comentários sobre regiões zootécnicas, como a cernelha dos cavalos, que teria como função a fixação da sela ao dorso. Desfazendo a confusão, não foi a cernelha constituída para a sela, mas sim a sela projetada para se ajustar à região dorsal do cavalo, respeitando sua anatomia.
     As selas  se constituem por regiões definidas, sendo a anterior chamada de cepilho, a posterior de patilha, e o assento, coxim. Sob as pernas do cavaleiro se estendem as abas, sobre as quais, de cada lado, são encontrados os loros, correias próprias para manter sustentados os estribos. Estes, por sua vez, encontram-se na extremidade inferior do loro, servindo para que o cavaleiro apoie sobre eles o peso das pernas e dos pés. Protegendo a perna do cavaleiro da fivela do loro, que se aloja num orifício do qual emerge  esta peça, as sobreabas completam a parte superior das selas. Na porção anterior das abas são encontradas as borrainas, que auxiliam o cavaleiro no apoio necessário para sua fixação à sela. Sob o coxim, em contato quase direto com os costados do animal, o suadouro. Impedindo o contato direto deste com o pêlo do cavalo são usadas mantas de couro, feltro, espuma ou outros materiais, conhecidas como baixeiros. Descendo sob as abas encontram-se os látegos, correias que prendem e ajustam a cilha e a barrigueira, ao lado esquerdo da sela. Ao lado direito, correias correspondentes e de mesma função recebem o nome de contra-látegos. Cilha e barrigueira são ajustadas no cilhadouro e barriga do animal, respectivamente, sendo a cilha mais apertada que a barrigueira. São elas que dão fixação da sela aos costados do animal. De uso pouco comum, peitoral e rabicho são acessórios que auxiliam a manter a sela na posição ideal. Hoje em dia, projetos mais apropriados dispensam estes acessórios, por tornarem a sela mais ajustada ao animal. A barrigueira é outro elemento dispensável, em selas mais evoluídas. Antigamente era comum, para uso em longas viagens, uma manta de pelo de carneiro, pelêgo, que recobria o coxim.. Usado em selas de coxim muito duro, este acessório torna a sela mais macia.
     A maioria das selas encontradas no mercado brasileiro, produzidas e usadas no meio rural, têm como característica o coxim inclinado para trás. Soma-se a isto o fato de que o loro se apresenta adiantado, forçando uma postura indevida do cavaleiro. Sentado na patilha, com as coxas em posição quase horizontal, o cavaleiro divide seu peso sobre dois pontos distintos: a patilha, que recebe o peso do corpo, e os estribos, que suportam o peso das pernas. O ponto de equilíbrio do cavaleiro não coincide com o do cavalo, que passa a ter sua região lombar sobrecarregada.
     As selas ideais para cavalgadas, enduros, concursos de marcha e a maioria dos esportes hípicos são adequadas para dar conforto e postura desejáveis. Com o coxim plano ou um pouco inclinado para a frente, estas selas permitem ao cavaleiro que se coloque mais verticalizado sobre o cavalo, assentado sobre o períneo, e não sobre as nádegas. Tronco e pernas na mesma vertical, o peso se concentra num único ponto, que deverá coincidir com o ponto de equilíbrio do animal. Os estribos não muito adiantados favorecem esta postura.
     Para fazer coincidir os pontos de equilíbrio do cavaleiro e do cavalo na mesma vertical, além da conformação da sela é fundamental que se observe a posição ideal de fixação. A porção anterior do suadouro deverá se acomodar logo atrás da escápula ( base óssea da espádua). Desta forma, o cavaleiro postado corretamente projeta seu peso para a região de transição entre a cernelha e o dorso, fazendo coincidir os pontos de equilíbrio. Esta condição é indispensável a uma equitação eficiente, capaz de promover a performance máxima do cavalo. Deve-se observar ainda a posição da cilha, que deverá ser ajustada a aproximadamente 3 a 4 dedos atrás do codilho. Estas referências são úteis na hora de se escolher uma sela ideal.
     Como condição final, por acreditarmos ser de importância menor que os outros itens, o acabamento da sela deve satisfazer o mais que possível o usuário, no que diz respeito a cor, aplicação, etc. O material de escolha para o revestimento deve ser o couro. Para permitir um deslizamento ideal dos quadris, o coxim deve ser revestido de couro liso. As abas e sobreabas revestidas de couro rugoso aumentam a aderência nos pontos onde a fixidez se aplica, através do contato firme da face interna da coxa. A armação estrutural de fibra de vidro tem se mostrado uma opção ideal, leve e resistente. Estribos de liga de alumínio são também leves e estéticamente agradáveis. Devem ser confeccionados de forma a permitir sua fixação no alto do loro, próximo à sobreaba, quando a sela não estiver em uso. Cilhas e barrigueiras de nylon são cortantes e abrasivas, sendo ideal para estas peças o algodão.
     A conservação da sela deve ser observada em caráter permanente, usando-se para isto o óleo de mocotó. Algumas lojas especializadas em artigos para montaria oferecem produtos ainda mais sofisticados para limpeza e conservação. As peças como loro, látego e contra-látego devem ser untadas, bem como o corpo da sela, aba, sobreaba. Ambiente  seco e ventilado é  ideal para se guardar sela e baixeiros. Alguns cuidados devem ser tomados, evitando-se que acessórios façam a ligação da sela com o chão ou pontos de circulação de roedores.
     Mazelas à parte, uma boa sela é bem mais que beleza e acabamento. E saber disso é bem mais que simplesmente sair para comprar sua próxima sela.